quarta-feira, 10 de maio de 2017

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Foto do Filme: O Último Capítulo.


Autora: Ana Paula Damasceno de Aguiar.

  
   A criatura estava largada em um canto do quarto. Deitada em posição fetal, com os olhos abertos e vidrados em lugar algum. Não havia sentimentos, muito menos emoção, era um recipiente de nada. Sentia o tecido macio cobrindo boa parte de sua pele, sentia uma onda de calor chegando em ondas e atravessando suas células. Teria células ainda? Não sabia, não sabia se essa onda de calor seria a loucura chegando e a inundando de incertezas. Sua respiração estava normal e harmonizava com o canto diurno das aves que ela escutava ao longe. Asas. Queria ter asas. Para fugir? Para viver de verdade? Para ver todas as formas da natureza e da destruição do homem se mesclarem num borrão meio escuro enquanto o vento forte a levava embora? Retorceu-se no monte macio onde estava, sentiu o tecido fixasse em seu pescoço, mas não se movimentou para tirá-lo. Estava cansada, cansada das engrenagens dentro dela, a obrigando a viver numa eterna repetição de tarefas bobas. Um grito de uma das aves ecoou pelo quarto escuro, a onda de calor moveu-se ao seu lado. Sentiu seu corpo erguendo-se, mesmo que sua mente estivesse dispersa demais para ordenar tal movimento. O tecido que a cobria, como se fosse uma camada mais grossa de sua pele, amontou-se a sua volta. Levantou-se. 

   Seus pés se arrastaram até as cortinas da enorme janela de madeira, suas mãos deslizaram pelo tecido áspero e o tirou do caminho da luz. O sol a saudou. Olhou para o amontoado de casas ao redor da sua, estendeu a mão em um cumprimento para o vizinho que sorria pra ela. Ordenou ao seu cérebro que movesse a sua boca num sorriso gentil, mas não conseguiu. Abaixou a mão e a deixou caída ao lado de seu corpo. O despertador rugiu, a onda de calor ficou mais forte. Acordando, a enchendo de sua presença. Virou-se e dessa vez as engrenagens torceram-se dentro de si, tossiu para recuperar a força de sua voz. Conseguiu.

   -Bom dia, vou descer para preparar o café. - a onda de calor a encarou sorrindo. Moveu seus pés e as engrenagens dentro dela, moveram-se com facilidade. 


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